Coluna | Periscópio
Wender Reis
Pedagogo e Orientador Social, curioso observador de tudo que causa espanto no mundo.
Sinal Vermelho: quando estudantes viram mendigos
16/02/2017


"Ei moço, tem uma moeda aí pra me dar?" "Não. Não tenho não." "Qualquer coisa." "Não mesmo... em que vestibular você passou?" "Física, na USP." "Parabéns." "Obrigado."

O roteiro já se naturalizou e é cumprido fielmente, semestre após semestre, por jovens ingressantes em universidades públicas Brasil a fora. Como nos permitimos aceitar e reproduzir tais tradições? Uma performance que perpetua contrastes sociais a ignorância coletiva, o ópio da nossa hipocrisia. 

Em Varginha, no semáforo da principal avenida do centro, rapazes e moças, recém aprovados no ensino superior público, celebram sua conquista pedindo uma "esmolinha". Os colegas os despojam dos sapatos, os garotos ficam sem camiseta e todos têm os rostos e os braços pichados por tinta ou ovo e farinha. Dividem espaço com aqueles que pedem esmola por uma carência real, prática, que contraria a carência que os filhos da abundância têm, que é de sentido. Divertem-se e demonstram muito prazer na brincadeira, que na sua ingenuidade reflete nossa desumanidade. 

Como pedagogo, com a indignação domesticada, corroboro para que o rapaz que estudará física na maior universidade do país chegue ao ensino superior ignorando o seu redor e sambando na cara da sociedade, intervenção urbana, que é o espetáculo do fracasso da nossa educação. A Física, ciência que estuda a natureza e seus fenômenos, procura a compreensão científica dos comportamentos naturais e gerais do mundo em torno de nós, das mínimas partículas ao universo como um todo. Certamente esse rapaz domina muito bem a linguagem matemática, o instrumento científico fundamental da física, mas não compreende a desigualdade social, o "fenômeno" que nas periferias faz barracos desafiarem a gravidade, que entre várias outras tragédias, faz a população carcerária do Brasil ser a 3ª maior do mundo. Português, Matemática, História, Geografia, e todas as outras, fracassam geração após geração, não fazendo entender o contexto da aplicação de suas matérias. 

Por que tal trote que passam e se sujeitam a passar não pode ser mais criativo? Se não optam por doar sangue nem investir parte do tempo em uma atividade comunitária qualquer, por que não realizam uma atividade artística ou cultural dentro da própria escola ou universidade? Se a razão de ser do trote é expor os futuros universitários a uma situação humilhante, porque não os colocam para cantar, dançar ou representar, mesmo que não saibam fazer isso? Ou por que não pedem esmolas dentro de suas futuras universidades, lugares onde os pobres de verdade não podem entrar? Por que, meu deus, esses trotes não podem ter uma conotação política, com críticas e reivindicações? 

O clique touch screen na tela do celular para gravar o rito de passagem faz uma fotografia da nossa pobreza social: o jovem de classe mais favorecida, que cursou o ensino regular em escolas particulares, inquestionavelmente melhores que as públicas, ingressa no ensino superior em universidades públicas, inquestionavelmente melhores que as particulares. 

Se querem "brincar de pobre" me permito sugerir duas opções como alternativa a ir para o semáforo. 

1ª: levem um pobre de verdade para 'brincar de rico", ao menos por um dia que seja. Banho, roupa nova, um tour pelo comércio para umas comprinhas, cinema, uma noite em alguma boate classe A...

2ª: pouco mais ousada, e por isso mesmo, gosto mais: pegar um por um dos príncipes e princesas boa pinta que estão tirando onda de pobre, tirar os seus celulares, dinheiro e documentos, soltá-los numa periferia, às dez horas da noite, para vê-los se virar em um ambiente adverso ao habitual conforto de seus bairros-condomínio.

Mas reconheço, de nada adianta toda essa ladainha. As semanas vão passar, mais jovens, os ricos e os "nova classe média", que por sua vez merece uma reflexão a parte, confirmarão resultados positivos e o semáforo da Avenida Rio Branco será palco para eles. O que preocupa é que a ignorância social dessa juventude anuncia nosso futuro: pessoas ocupando cargos no poder, políticos, diretores de universidades, juízes, administradores de hospitais e pior, muitíssimo pior, nas escolas ensinando nossos filhos, sobrinhos e netos. 

E claro, esse futuro já é presente, não precisa esforço para observar o perfil de muitas pessoas que estão em destaque aqui em Varginha ou em qualquer canto do país. É fácil constatar que muitos deles foram nonsenses que anos atrás pediam esmola nos sinais.

 

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