O presente estudo pretende discutir o problema dos produtos viciados, assim entendido como aqueles que o consumidor adquiri mas não consegue utilizá-lo, seja porque o vício (defeito) o torna impróprio ou inadequados ao consumo. Esta situação pode gerar danos morais? Estaria o fornecedor obrigado a reparar o dano?
Para responder a estas perguntas trabalharemos um caso real. Na última semana fiquei surpreso com uma decisão judicial, onde a Juíza do Juizado Especial Cível da Comarca de Campo Belo julgou improcedente (indeferiu) o pedido de indenização por danos morais, ao argumento de que meros aborrecimentos não geram direito à indenização por danos morais. Será que isto é verdade? Mas o que são “meros aborrecimentos”?
Entenda o caso.
O consumidor, em 9/10/2011, adquiriu da Eletrozema um computador, marca SEMP TOSHIBA. Poucos meses depois, mais precisamente em 1/3/2012, o produto apresentou um vício. Diagnosticado o vício (CPU travando), o produto foi encaminhado para a assistência técnica em 20/3/2012. Em 30 (trinta) dias vício foi sanado. Em 5/7/2012 o produto voltou apresentar o mesmo problema. Novamente fora encaminhado para a assistência técnica. Decorrido mais de 30 dias, o produto não foi devolvido. O consumidor, cansado de entrar em contato com a assistência técnica, procurou o PROCON local e fez uma reclamação. Notificada, a assistência técnica informou que a SEMP TOSHIBA forneceria outro computador novo em substituição àquele. Este comunicado ocorreu em 29/8/2012. O consumidor entrou em contado com o fornecedor inúmeras vezes. Sem sucesso, não restou alternativa senão o ajuizamento de uma ação pedindo o cumprimento do artigo 18, do Código de Defesa do Consumidor, bem como a condenação do fornecedor por danos morais. Somente após o ajuizamento da ação1 (14/12/2012) é que a SEMP TOSHIBA forneceu outro computador.
Uma análise simples do período decorrido entre a data da aquisição e a data da entrega do novo computador, soma-se, aproximadamente, 14 meses, dos quais o consumidor ficou privado de utilizar o produto por mais de 8 meses.
O consumidor teve mero aborrecimento?
O consumidor teve apenas uma mera insatisfação contratual?
É evidente que não!
Mas a Juíza entendeu que sim.
Na respeitável sentença a Julgadora salientou que “a situação dos autos se caracteriza como mera insatisfação contratual, uma vez que o autor se sentiu prejudicado por ter adquirido produto defeituoso”.
Mais adiante, argumenta que
“os transtornos causados estão dentro de uma linha de riscos de uma vida em sociedade, não decorrendo nenhuma dor moral, pelo menos que seja passível de indenização pecuniária. Tal fato, embora não desejável, é previsível na vida em sociedade. Sofreu o autor, no máximo, mero dissabor, incômodo, e, embora desagradável a situação experimentada, não houve, repita-se, lesão aos direitos da personalidade a ponto de embasar uma pretensão à indenização por danos morais.”
Em que pese o conhecimento jurídico da i. Magistrada, a situação narrada nos autos, contrário ao entendimento exarado na respeitável sentença, não constitui mero aborrecimento, isto porque, conforme mencionado a pouco, o consumidor esteve privado de utilizar o produto por mais de oito meses. Isto não pode ser considerado mero aborrecimento.
O artigo 18, §1, do CDC tem a seguinte redação:
“Não sendo o vício sanado no prazo máximo de 30 (trinta) dias, pode o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha:
I – a substituição do produto por outro da mesma espécie, em perfeita condições de uso;
II – a restituição imediata da quantia paga monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos;
III – o abatimento proporcional do preço”.
Observa-se que o legislador concede ao fornecedor, neste caso a SEMP TOSHIBA, o direito de sanar o vício no período de 302 dias . Não o fazendo deverá cumprir uma das situações previstas nos incisos apontados acima.
No caso do processo em análise, o fornecedor só substituiu o produto após o ajuizamento da ação, isto depois de ter decorrido mais de 4 (quatro) meses. Não fosse o ajuizamento da ação, talvez o produto não teria sido substituído até hoje!
Não se deve considerar que a atitude da SEMP TOSHIBA seja algo previsível dentro de uma linha de risco de uma sociedade; não deve considerá-lo como um fato comum imposto a quem vive em sociedade.
O direito do consumidor não teria sentido algum de existir não fosse o consumidor a parte mais frágil da relação jurídica de consumo. Vale lembrar que a proteção do consumidor é matéria de ordem pública, elevada como direito fundamental e princípio da ordem econômica.
José Afonso da Silva salienta que “com a inserção dessa cláusula de tutela entre os direitos fundamentais, os consumidores foram erigidos à categoria de titulares de direitos constitucionais fundamentais”3 .
Vale transcrever o desabafo do professor Cavalieri Filho:
“O Código de Defesa do Consumidor só existe porque o consumidor é vulnerável; porque o consumidor é o sujeito mais fraco da relação jurídica de consumo e, portanto, o que está exposto a ofensas e agressões – o que ocorria e ainda ocorre com indesejada frequência, principalmente naqueles segmentos em que fala alto o poder econômico, como o sistema financeiro. Não fosse isso, não precisaria o consumidor de uma legislação que o protegesse e defendesse. E o que deseja essa legislação? Ética, respeito, equilíbrio e harmonia nas relações de consumo. Como fazer? Mudando mentalidades; educando, orientando os sujeitos dessa relação jurídica. Mas isso leva tempo. [...]”4 . grifo inexistente no original.
O Código de Defesa do Consumidor só existe porque o consumidor é vulnerável!
E como tal, merece a devida e efetiva proteção!
Se uma situação envolvendo um consumidor que ficou privado de seu produto por um período (nada razoável) de 8 meses for considerada comum, normal na sociedade atual, para que serve as leis consumeristas?
Onde está o direito fundamental?
Não parece crível que uma situação dessas possa gerar apenas meros aborrecimentos. É certo que o simples vício no produto não gera danos morais, entretanto, o que se discutiu no processo em comento não é apenas o vício e sim a desídia, o descaso do fornecedor em cumprir o disposto no artigo 18, do Código de Defesa do Consumidor.
Neste caso, o professor Cavalieri Filho discorre que haverá dano extra rem, onde o dano está apenas indiretamente ligado ao vício do produto, na realidade decorre de causa superveniente, relativamente independente, e que por si só produz o resultado. Sendo assim, não é o vício do produto que causou o dano e sim, conforme já mencionado a conduta do fornecedor, posterior ao vício, por não dar ao caso a atenção e solução devida5 .
Em casos semelhantes os Tribunais têm condenado os fornecedores ao pagamento de indenização por danos morais, veja:
60009557 - CIVIL. DANOS MATERIAIS E MORAIS. DEMORA NO CONSERTO DO BEM. INDENIZAÇÃO DEVIDA. O comerciante responde pelo ressarcimento do valor pago pelo produto que não tem o seu vício sanado no prazo de legal, bem como, pelos danos causados oriundos da relação de consumo. Não sendo o vício sido sanado no prazo legal, gera o direito do consumidor em ser ressarcido no valor pago pelo produto viciado, além de configurar o abalo moral pelos transtornos gerados com a demora imotivada em sanar o problema. provado o dano, bem como o nexo causal entre esse e o evento danoso, surge o dever de indenizar a vítima. conhecimento e improvimento do recurso. (TJRN; RecCv 2009.900407-3; Segunda Turma Recursal dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais; Relª Juíza Suely Maria F. Silveira; DJRN 17/04/2009; Pág. 549)
95581675 - BEM MÓVEL. COMPRA E VENDA. RELAÇÃO DE CONSUMO. DEFEITO. DEMORA NA TROCA DO PRODUTO. DANOS MORAIS. AÇÃO INDENIZATÓRIA. 1. Sendo incontroverso nos autos que a fabricante do produto procedeu à substituição do bem adquirido pelos autores, reconhecendo o direito à troca, pressupõe-se o defeito ou vício que o tornava impróprio ao consumo, nos termos dos artigos 12 e 18 do Código de Defesa do Consumidor. 2. A demora da fabricante em proceder à troca do produto, ultrapassando em muito o prazo do artigo 18, §1º da Lei nº 8.078/90, configura ato negligente e desidioso a ensejar a compensação dos danos morais decorrentes da privação do uso do bem, que se revela de extrema necessidade ao consumidor. 3. A indenização por dano moral, inapta a quantificar a dor da vítima, mas cuja fixação deve ter o condão de configurar compensação pelo dano, deve ser arbitrada de forma moderada, atendendo-se ao binômio razoabilidade e proporcionalidade, sem configurar enriquecimento indevido da vítima. 4. Negaram provimento aos recursos, principal da ré e adesivo dos autores. (TJSP; APL 0005173-35.2010.8.26.0590; Ac. 6578941; São Vicente; Vigésima Quinta Câmara de Direito Privado; Rel. Des. Vanderci Álvares; Julg. 13/03/2013; DJESP 26/03/2013) 94128301 - APELAÇÃO CÍVEL. DANO MORAL E MATERIAL. VÍCIO DO PRODUTO. ILEGITIMIDADE PASSIVA DO COMERCIANTE E DA EMPRESA DE ASSISTÊNCIA TÉCNICA. DEMORA NO CONSERTO DO PRODUTO. DANOS MORAIS. OCORRÊNCIA. O comerciante é solidariamente responsável pelos vícios no produto, nos termos do art. 18 do CDC. Assim sendo, o comerciante é parte legítima. Tanto o fabricante, quanto o fornecedor são responsáveis pela garantia contratual. Sofre dano moral aquele que vê frustrada, por desídia do fornecedor, a legítima expectativa de utilização de bem de consumo durável adquirido, devendo a indenização ser fixada com proporcionalidade e razoabilidade. (TJMG; APCV 1.0145.11.061504-7/001; Rel. Des. Estevao Lucchesi; Julg. 30/08/2012; DJEMG 14/09/2012).
Houve uma relação jurídica de consumo, onde o consumidor (parte vulnerável) esteve impossibilitado de utilizar o produto, tendo sua expectativa frustrada ante a existência de um vício não sanado corretamente e a tempo.
Conclui-se que, não obstante o entendimento da MM. Juíza, o consumidor não foi exposto a meros aborrecimentos, ele foi privado de utilizar o produto por um período nada razoável; o fornecedor não cumpriu o disposto no CDC, extrapolando, em muito, o prazo para sanar o vício ou substituir o produto, gerando um dano, o qual deve ser reparado.
1 - Processo nº. 0112.12.008844-1 – JESP Cível – Campo Belo – MG. 2 - Por força do §2º, do artigo 18, do CDC, este prazo pode ser prorrogado por até 180 dias, mas deverá ser convencionado entre as partes. 3 - Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 261-262, item 27, 20. ed., 2002, Malheiros. 4 - Programa de direito do consumidor. 3. ed. – São Paulo: Atlas, 2011. 5 - Ibid.
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