Se fosse tal qual a definição, quem sabe tudo seria muito simples. Ocorre que exercitar a cidadania não é tão fácil assim, principalmente devido a uma série de fatores e dificuldades que, aos poucos, ficarão evidentes nesta obra. É oportuno, ainda, observar que, ao exercitar a cidadania, as relações interpessoais também devem ser consideradas, uma vez que o Estado é apenas uma figura de representação política da nação que, em tese, deveria garantir o pleno gozo dos direitos e o cumprimento dos deveres. Pode-se dizer, dentro dessa perspectiva, que o vir a ser da cidadania só se realiza através dos atos ou ações dos indivíduos, e não apenas pela existência do seu enunciado legal.
Embora classicamente a cidadania seja uma qualidade atribuída ao cidadão, na verdade ela principia na pessoa humana; a lei pode trazer no seu bojo preceitos, definições e formas reguladoras da cidadania, porém, ela não a realiza, não torna o indivíduo cidadão apenas pela subjetividade. A compreensão de que para ser cidadão bastaria simplesmente cumprir as leis é totalmente ultrapassada, aliás, esta sempre foi a lógica do discurso da chamada classe dominante; uma maneira de reduzir e limitar o exercício da cidadania ao cumprimento unilateral das regras legais, sem que houvesse a contrapartida do Estado em proporcionar condições para o gozo dos direitos fundamentais dos cidadãos.
Então, repetindo, de maneira clara e objetiva: a cidadania enquanto enunciado jurídico é apenas uma expectativa de direitos e responsabilidades, algo imanifesto, haja vista que ela só se manifesta e ganha vida através do seu pleno e livre exercício. Ela emana, sobremaneira, da sua prática, do compromisso consciente do indivíduo ao agir, ao assumir o papel de agente da transformação histórica ocupando legitimamente o seu espaço de forma real dentro do universo político, econômico, cultural e social do país. A cidadania colocada em movimento é que qualifica o indivíduo como cidadão. O indivíduo estanque, parado, é só indivíduo e não sujeito instituído de cidadania. Utilizando-se do que disse Raul Seixas em “Ouro de Tolo”, que é bastante ilustrativo do comodismo, é possível afirmar categoricamente que todo o indivíduo que permanece sentado no “trono de um apartamento com a boca escancarada cheia de dentes esperando a morte chegar”, ou, quem sabe, aguardando alguma mágica que lhe resolva a vida, dificilmente chegará a ser um cidadão. Embora, muitos, na maioria das vezes emburrecidos pela TV, sejam levados a acreditar no contrário...
A cidadania é também, por assim dizer, uma via de mão dupla: traz consigo o querer, o desejo, a reivindicação da concretização de um direito, e, por outro lado, enseja uma contrapartida, uma responsabilidade. A comunidade de um bairro, por exemplo, ao reivindicar o atendimento do seu direito ao lazer, solicitando à Prefeitura a construção de uma quadra de esportes, ao ser atendido o pleito, ela, a comunidade, deve ter clara a responsabilidade pelos cuidados do bem em questão. O que significa que a cada “gozo de direito” corresponde uma nova ação do sujeito da cidadania: aquela que preserva o direito. Sendo assim, a ação de cidadania “não se aliena e nem se submete”, pelo contrário, a dinâmica do seu exercício reforça o tom da emancipação do cidadão.
Vale destacar ainda que, de forma relativa, as chamadas cidadanias civis e política estão num campo onde, pode-se dizer, situam-se mais próximas da sua realização; por outro lado, a cidadania social ainda está por fazer, por se consolidar. Então não há como iludir-se com alguns avanços. O espaço que separa “os que têm dos que não têm”, “os incluídos dos excluídos”, “os iguais dos desiguais”, ainda é e será um longo caminho que a ser percorrido a passos largos e sem trégua.
Capítulo I, transcrito do livro Cidadania, O Direito de Ser Feliz.
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